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terça-feira, 1 de abril de 2014

Acerca de Agostinho da Silva


“O que é que eu penso da morte? Não penso nada, porque nunca morri, não tenho nada que me pronunciar sobre esse assunto. Deixa-me morrer, porque depois, se houver alguma coisa e eu puder dizer, eu comunico para você, sou seu amigo, porque é que não hei-de comunicar, não é?”


Experiência inesquecível
acompanhar Agostinho da Silva pelas ruas de Lisboa era uma experiência inesquecível. De passo distraído, detinha-se, sem tempo (nem noção dele), ante qualquer criança, pedinte, idoso, ou cão, gato, pombo, ou dona de casa, ou montra, ou veículo que o sugestionasse. A todos, sobre todos, falava usando registos próprios para cada um, como se cada um (pessoa, animal, objecto) lhe fosse consanguíneo.
Quando entrou pela primeira vez nas amoreiras (para uma entrevista na tsf, então instalada naquele edifício), sentiu-se deslumbrado com tanto conforto, tanta luz, tanto luxo – tanta inutilidade….
Chegámos, uma vez, a demorar um dia, das nove da manhã às sete da tarde, para irmos da sua casa, no príncipe real, à galeria 111, no campo grande, por causa de uma exposição – tais as surpresas, os encontros, as conversas, as confidências, os pedidos, as estórias, as afectuosidades, os inesperados que a sua presença suscitou.
Tomámos café na Cister, almoçámos na mourisca, lanchámos na Grã Fina. Ao chegarmos, seis horas e cinco quilómetros depois, ao destino, restou-nos apanhar (a mostra encerrara há muito) um táxi de regresso.
«foi um dos espíritos mais enigmáticos, fascinantes e inquietantes de Portugal, mesmo do mundo», afirmará Pedro Borges, um dos grandes estudiosos da sua obra.
Espectador implacável de si mesmo – maneira de não se prender à precariedade da vida – apercebe-se, quando sofre os ataques mais fortes da doença, da chegada do fim.
«bom, vais ter muita calma, com um pouco de sorte ainda podes ficar lúcido e trabalhar umas duas horas por dia. Já não será mau», autodomina-se, na ambulância que o leva para o hospital, no seu jeito de dar a volta a tudo – sobretudo ao medo. Consente em ficar internado. Depois, fendido por tromboses sucessivas, cai em coma.
«se o destino nos der limões, façamos limonada, e se pudermos deitemos-lhe açúcar», enfatizava. O gosto, o gozo de estar nos dois lados, nos vários lados da vida, constituiu o seu maior fascínio.
«a nossa existência é um barco», dizia, «que atravessa frequentes tempestade. Estamos agora numa, e bem ruim. O segredo para resistir é não olhar pela borda fora, se não enjoamos e fazemos os outros enjoar. O segredo é olhar o horizonte, mesmo sabendo que não chegaremos lá.»
com simplicidade e descaramento conciliava todos os contraditórios, todos os opostos, racionalismo e esoterismo, renúncia e prazer, acção e reflexão, passado e futuro, tragédia e farsa, sucesso e fracasso, feminino e masculino, novo e velho, crueldade e bondade, vício e virtude, ter e ser. Conciliava-os para os confundir, os acrescentar, os harmonizar, os neutralizar, os perturbar.
«divirto-me sobretudo com o que não tenho, com o que me desagrada. Temos de fazer da nossa vida uma ficção para conseguirmos torná-la suportável.»
não possuía bilhete de identidade, nem cartão-de-visita, nem número de contribuinte. Só passaporte: «se eu tiver número de contribuinte fico na obrigação de ver o que é que o governo faz do dinheiro dos contribuintes. E aí entro em conflito com Portugal, o que não quero. Porque estou gratíssimo a Portugal por me ter deixado nascer nele.»
em Portugal, no brasil, em cabo verde, na guiné, em são Tomé, em angola, em moçambique, em Macau, em timor há quem afirme dever a agostinho da silva algo de decisivo, de transformador da sua vida.
«se não tivesse quase a certeza de que, em última instância, o caminho vai dar certo, porventura não me empenharia em agir, em agir pensando, em agir quieto. Só que para mim o dar certo confunde-se com o desaparecimento total das coisas. É como se fosse correndo, entusiasmado, para um ponto de completo desaparecimento com a ideia de que, nesse desaparecimento, a consciência continuará a existir.»
gesto suspenso, olhar fundo, agostinho da silva («profeta do terceiro milénio» lhe chamou António Quadros) regressou lentamente, mal começara Abril de 1994, ao lugar de onde viera – o futuro.
                                                  

Quem foi Agostinho da Silva


Gratidão Jorge por esta partilha)








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