Amigos, ao lançar-mos o alerta da plena atenção e acção contra a Pedofilia, torna-se também no agitar de outras águas bem densas como nos esclarece a opinião da estimada amiga Doutora Marta Sobral que diariamente e na sua vertente profissional lida com situações cuja mudança apenas será viável pelo caminho da conscientização da sua existência, e pela conjugação de forças que levem à transcendência de comportamentos inaceitáveis em qualquer sociedade.
O caminho e a hora é de mobilização.
A.
"O flagelo
dos maus-tratos a crianças, que é mais abrangente do que a Pedofilia e que
muitas vezes manifesta-se de forma silenciosa nos lares, classes sociais e
locais mais insuspeitos, é uma realidade que merecia a nossa permanente atenção
e empenho, em todas as facetas da nossa vida. Como advogada nunca deparei com
casos de pedofilia, mas foram já algumas as vezes em que tive de me impor (até
contra a parte que representava) para colocar bom senso em pais que fazem de
filhos armas de arremesso, na feira das vaidades, do orgulho ferido e do ego
que, qual flor de estufa, encara uma separação como ofensa a um estatuto
inquestionável, daquele que tudo pode e domina, sem aceitar a quota-parte de
vontade própria do outro com quem se partilhou uma vida. Discute-se a custódia
dos filhos como se discute a propriedade do micro ondas, do carro, da
aparelhagem, da casa, tudo com o único intuito de encontrar o ponto fraco que
faça desabar as pretensões do adversário.
Quanto à
pedofilia temo às vezes que a tendência da nossa sociedade para normalizar o
anormal a possa, um dia, torná-la banal e, quem sabe, ainda não possa ser
objecto de um referendo, como outras questões que, sendo de Princípios Básicos
da Decência Humana, não deviam ser questionados na praça pública, entre
umas “minis” ou um intervalo da bola, sentenciando-se o sagrado voto
depois de ouvir os comentadores de serviço e ao serviço dos interesses que lhes
dão voz contínua e diária, nos meios de comunicação social.
Estou a ser
pessimista? Será? Já pensamos quem são as pessoas que procuram as rotas do
turismo pedófilo? E não precisamos de ir a um destino exótico ou mergulhado em
profunda miséria, para assim se justificar o injustificável, basta olhar para o
que se passa no nosso país, na Madeira, paraíso e destino deste tipo de
turismo. E quem o procura? Debochados, psicopatas, marginais da sociedade? Não:
gente com dinheiro para aliciar crianças para a mais vil exploração com um par
de ténis da moda, que são bons chefes de família, profissionais honrados e bem
sucedidos, de moral inquestionável. E se um dia esses turistas insuspeitos,
muitas vezes com grande poder económico e ligados a núcleos influentes da
sociedade, no secretismo da câmara de voto, pudessem colocar o “x” na
quadrícula que permitisse aligeirar os limites da protecção das crianças?
Quantas vezes já ouvimos que hoje um(a) jovem com 14, 15, 16 anos é bem
informado (a), têm uma maturidade acrescida fruto do acesso a informação e da
evolução do meio em que se insere, mais parecendo às vezes adulto(a)s. Mas não
deixam de ser crianças ou jovens com tempo para crescerem, sem a maturidade
necessária para escolherem (se é que alguém o escolhe de facto) seguir o
caminho do sofrimento pela ofensa à sua dignidade pessoal, aceitando sobreviver
à custa do corpo, em nome de um sucesso e ascensão económica rápida, nem que
seja para ter apenas o par de ténis que a publicidade elegeu como o nirvana da
sua existência.
E a
normalização da anormalidade está aí, nos sítios mais improváveis e damos de
frente com ela todos os dias. O problema é que a passagem da anormalidade para
a normalidade faz-se de forma silenciosa, por entre as correrias e preocupações
do dia a dia e quando dermos conta está instalada a inversão de todos os
limites. Ainda há pouco regressei do escritório mais cedo, por causa do cortejo
da Queima. Quando vinha pela rua deparei, entre outros episódios que não dá
para enumerar, com um que me chocou. Sentados num passeio da baixa, qual
mendigos ou indigentes se trajassem roupas andrajosas ou denotassem falta de
banho, estava um grupo de estudantes – os professores, economistas, advogados,
médicos, enfermeiros, engenheiros, etc, etc, etc…. de amanhã – a beberem
grandes goladas directamente de pacotes do mais fanhoso vinho branco, que
tinham comprado no supermercado ali ao lado. Também fui estudante e andei nas
Queimas, onde eu e os meus colegas cometemos excessos de bebida, mas nada como
agora. Não havia o orgulho na ostentação do boçal, ordinário e grotesco como
agora, que se exibe às claras como se de um grande feito se tratasse. Os
jardins, ruas e locais públicos junto a minha casa, em plena zona
universitária, há dias que estão invadidos por lixo, garrafas, restos de
comida, copos e marcas dos efeitos fisiológicos de noites embaladas pelo
álcool, erva (que se cheira a qualquer hora que se dê um passeio junto a uma
esplanada de café), mais parecendo que por aqui passou uma tribo de terríveis e
indomáveis malfeitores. Mas é uma cena tipo normal, bué de altamente para
curtirmos os últimos dias antes dos exames ( sei lá tipo se der para ir aos
exames, pois a malta não consegue estudar tipo a matéria toda que o prof dá,
tipo não tem tempo e os livros são caros e as fotocópias então, o gaijo
farta-se de dar apontamentos e a família tipo sei lá não tem dinheiro e o
Estado não paga….Pois: mas para a bejeca, o concerto, as discotecas com consumo
mínimo, isso já há? Essa é outra das razões porque no meu tempo não era assim:
não havia tanto dinheiro para esbanjar, logo a bebedeiras e saídas eram mais
comedidas).
Correndo o
risco de me tornar a anormal por defender a normalidade, não abdico de assumir
a normalidade que me foi transmitida – felizmente tive pais, avós, professores
de outros tempos – e não abdicar de coisas tão normais como o respeito
pela dignidade própria – assumo o meu narcisismo, mas considero esta exigência
o pilar mais importante de qualquer vida em sociedade minimamente saudável:
quem não se respeita a si, não pode ser respeitado ou exigir respeito,
para si ou para os outros! E cada um, na mesma medida em que exige dignidade e
respeito para si, tem o dever ético e de consciência de exigir esse mesmo
respeito para quem o não pode fazer por si próprio, atenta a fragilidade da sua
condição pessoal, social e de desenvolvimento, como acontece com as Crianças.
Não podemos olhar para o lado e pactuar com quem as explora, mesmo que isso
signifique deixar de comprar um par de sapatilhas ou uma bola de futebol cozida
à mão por crianças, para garantirem uma taça de arroz. Não podemos ficar
indiferentes com o olhar distante, de quem quer ficar longe do sofrimento, de
uma criança que ouvimos no meio da noite a soluçar ou que se cruza no elevador,
no café, na rua, com um olhar suplicante, só porque não queremos chatices com o
vizinho ou porque hoje não dá jeito.
E agora
lembrei-me da citação de George Orwell que abre o livro de James Redfield , “A
Décima Segunda Revelação”, com o subtítulo “A Hora da Decisão”, muito oportuno
nos tempos que correm: Num tempo em que todos enganam, dizer a verdade torna-se
um acto revolucionário”.
Marta Sobral