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sexta-feira, 12 de maio de 2017

...E as outras Realidades...

Amigos, ao lançar-mos o alerta da plena atenção e acção contra a Pedofilia, torna-se também no agitar de outras águas bem densas  como nos esclarece a opinião da estimada amiga Doutora Marta Sobral que diariamente e na sua vertente profissional lida com situações cuja mudança apenas será viável pelo caminho da conscientização da sua existência, e pela conjugação de forças que levem à transcendência de comportamentos inaceitáveis em qualquer sociedade.
O caminho e a hora é de mobilização.

A.

"O flagelo dos maus-tratos a crianças, que é mais abrangente do que a Pedofilia e que muitas vezes manifesta-se de forma silenciosa nos lares, classes sociais e locais mais insuspeitos, é uma realidade que merecia a nossa permanente atenção e empenho, em todas as facetas da nossa vida. Como advogada nunca deparei com casos de pedofilia, mas foram já algumas as vezes em que tive de me impor (até contra a parte que representava) para colocar bom senso em pais que fazem de filhos armas de arremesso, na feira das vaidades, do orgulho ferido e do ego que, qual flor de estufa, encara uma separação como ofensa a um estatuto inquestionável, daquele que tudo pode e domina, sem aceitar a quota-parte de vontade própria do outro com quem se partilhou uma vida. Discute-se a custódia dos filhos como se discute a propriedade do micro ondas, do carro, da aparelhagem, da casa, tudo com o único intuito de encontrar o ponto fraco que faça desabar as pretensões do adversário.
Quanto à pedofilia temo às vezes que a tendência da nossa sociedade para normalizar o anormal a possa, um dia, torná-la banal e, quem sabe, ainda não possa ser objecto de um referendo, como outras questões que, sendo de Princípios Básicos da Decência Humana, não deviam ser questionados na praça pública, entre umas  “minis” ou um intervalo da bola, sentenciando-se o sagrado voto depois de ouvir os comentadores de serviço e ao serviço dos interesses que lhes dão voz contínua e diária, nos meios de comunicação social.
Estou a ser pessimista? Será? Já pensamos quem são as pessoas que procuram as rotas do turismo pedófilo? E não precisamos de ir a um destino exótico ou mergulhado em profunda miséria, para assim se justificar o injustificável, basta olhar para o que se passa no nosso país, na Madeira, paraíso e destino deste tipo de turismo. E quem o procura? Debochados, psicopatas, marginais da sociedade? Não: gente com dinheiro para aliciar crianças para a mais vil exploração com um par de ténis da moda, que são bons chefes de família, profissionais honrados e bem sucedidos, de moral inquestionável. E se um dia esses turistas insuspeitos, muitas vezes com grande poder económico e ligados a núcleos influentes da sociedade, no secretismo da câmara de voto, pudessem colocar o “x” na quadrícula que permitisse aligeirar os limites da protecção das crianças? Quantas vezes já ouvimos que hoje um(a) jovem com 14, 15, 16 anos é bem informado (a), têm uma maturidade acrescida fruto do acesso a informação e da evolução do meio em que se insere, mais parecendo às vezes adulto(a)s. Mas não deixam de ser crianças ou jovens com tempo para crescerem, sem a maturidade necessária para escolherem (se é que alguém o escolhe de facto) seguir o caminho do sofrimento pela ofensa à sua dignidade pessoal, aceitando sobreviver à custa do corpo, em nome de um sucesso e ascensão económica rápida, nem que seja para ter apenas o par de ténis que a publicidade elegeu como o nirvana da sua existência.
E a normalização da anormalidade está aí, nos sítios mais improváveis e damos de frente com ela todos os dias. O problema é que a passagem da anormalidade para a normalidade faz-se de forma silenciosa, por entre as correrias e preocupações do dia a dia e quando dermos conta está instalada a inversão de todos os limites. Ainda há pouco regressei do escritório mais cedo, por causa do cortejo da Queima. Quando vinha pela rua deparei, entre outros episódios que não dá para enumerar, com um que me chocou. Sentados num passeio da baixa, qual mendigos ou indigentes se trajassem roupas andrajosas ou denotassem falta de banho, estava um grupo de estudantes – os professores, economistas, advogados, médicos, enfermeiros, engenheiros, etc, etc, etc…. de amanhã – a beberem grandes goladas directamente de pacotes do mais fanhoso vinho branco, que tinham comprado no supermercado ali ao lado. Também fui estudante e andei nas Queimas, onde eu e os meus colegas cometemos excessos de bebida, mas nada como agora. Não havia o orgulho na ostentação do boçal, ordinário e grotesco como agora, que se exibe às claras como se de um grande feito se tratasse. Os jardins, ruas e locais públicos junto a minha casa, em plena zona universitária, há dias que estão invadidos por lixo, garrafas, restos de comida, copos e marcas dos efeitos fisiológicos de noites embaladas pelo álcool, erva (que se cheira a qualquer hora que se dê um passeio junto a uma esplanada de café), mais parecendo que por aqui passou uma tribo de terríveis e indomáveis malfeitores. Mas é uma cena tipo normal, bué de altamente para curtirmos os últimos dias antes dos exames ( sei lá tipo se der para ir aos exames, pois a malta não consegue estudar tipo a matéria toda que o prof dá, tipo não tem tempo e os livros são caros e as fotocópias então, o gaijo farta-se de dar apontamentos e a família tipo sei lá não tem dinheiro e o Estado não paga….Pois: mas para a bejeca, o concerto, as discotecas com consumo mínimo, isso já há? Essa é outra das razões porque no meu tempo não era assim: não havia tanto dinheiro para esbanjar, logo a bebedeiras e saídas eram mais comedidas).
Correndo o risco de me tornar a anormal por defender a normalidade, não abdico de assumir a normalidade que me foi transmitida – felizmente tive pais, avós, professores de outros tempos – e não abdicar de coisas tão normais  como o respeito pela dignidade própria – assumo o meu narcisismo, mas considero esta exigência o pilar mais importante de qualquer vida em sociedade minimamente saudável: quem  não se respeita a si, não pode ser respeitado ou exigir respeito, para si ou para os outros! E cada um, na mesma medida em que exige dignidade e respeito para si, tem o dever ético e de consciência de exigir esse mesmo respeito para quem o não pode fazer por si próprio, atenta a fragilidade da sua condição pessoal, social e de desenvolvimento, como acontece com as Crianças. Não podemos olhar para o lado e pactuar com quem as explora, mesmo que isso signifique deixar de comprar um par de sapatilhas ou uma bola de futebol cozida à mão por crianças, para garantirem uma taça de arroz. Não podemos ficar indiferentes com o olhar distante, de quem quer ficar longe do sofrimento, de uma criança que ouvimos no meio da noite a soluçar ou que se cruza no elevador, no café, na rua, com um olhar suplicante, só porque não queremos chatices com o vizinho ou porque hoje não dá jeito.
E agora lembrei-me da citação de George Orwell que abre o livro de James Redfield , “A Décima Segunda Revelação”, com o subtítulo “A Hora da Decisão”, muito oportuno nos tempos que correm: Num tempo em que todos enganam, dizer a verdade torna-se um acto revolucionário”.

Marta Sobral


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