sociedade?:
Alertas vindos de
ex-quadros apontam para a manipulação dos utilizadores. O JN ouviu
investigadores: "Nem apocalípticos nem integrados".
Natal chegou. E com
ele um dos momentos mais esperados do ano. O momento de reunir as famílias que,
por vezes, só têm este dia para se juntar. Mas como é que a geração do milénio
vive esta quadra tão familiar, tão pessoal, tão cara a cara? Com um telemóvel
ligado à Internet. E a bateria no máximo...
Já não se fazem
círculos de conversa à volta da mesa, mas sim grupos de chat onde todos podem
conversar. Às vezes, de um lado para o outro da dita mesa. Já não se tiram
fotografias para adornar as paredes de casas. Ao invés, publicam-se nas redes
sociais para eternizar. Ou partilhar com o mundo inteiro. Ou somar
"gostos". Porque já não bastam os elogios dos amigos e da família.
"A arte da
conversa olhos nos olhos começa a perder-se", diz Hélder Bastos, diretor
da Licenciatura em Ciências da Comunicação na Universidade do Porto, satisfeito
por "começar a haver o esboço de uma crítica às redes sociais". Até
agora, "as críticas tinham sido mantidas em silêncio em Silicon Valley por
serem más para o negócio". Já não é assim.
Várias têm sido as
vozes a criticar publicamente as redes sociais. Alguns vindas de dentro. O
detrator que mais recentemente deu a cara é Chamath Palihapitiya. Ex-diretor
executivo do Facebook, era responsável por gerir e aumentar os utilizadores. Em
novembro, disse sem receios que as redes, e essencialmente o Facebook, estão
"a danificar as bases fundamentais de como as pessoas se comportam e se
relacionam".
Admitindo sentir-se
"tremendamente culpado" por ter participado na construção de uma
ferramenta que está agora a "destruir a forma como a sociedade
funciona", Chamath Palihapitiya afirmou sem papas na língua: "Eu não
uso esta merda e não permito que os meus filhos usem esta merda".
Lenha para a vaidade
A ligação às redes é
constante. Tanta que, por vezes, perde-se a noção do tempo e do real. Até que
ponto somos capazes de controlar a nossa atividade e perceber que nos estamos a
afastar da vida fora do ecrã?
Para Hélder Bastos, as
redes sociais "trabalham para aumentar a dependência das pessoas à
Internet através do prazer, da constante espera de "likes" e de
comentários". E a dependência torna-se mais grave quando alimenta o
narcisismo. A adoração do eu e o fascínio pela própria imagem é constantemente
alimentada pela "personagem" que criamos no perfil. "A sociedade
global é estimulada a "especularizar-se" digitalmente. Então há um
gozo narcísico nas redes sociais", explica Fábio Malini, investigador do
Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic), da Universidade
Federal Espírito Santo, no Brasil.
Palihapitiya não foi o
único ex-quadro do Facebook a criticar a empresa. Também Sean Parker,
presidente fundador, acusou a rede social de se aproveitar da
"vulnerabilidade da psicologia humana". Diz Hélder Bastos que
"as implicações deste fenómeno das redes estão a ser brutais".
Porque, até agora, "o Facebook estava a trabalhar para aumentar a
dependência das pessoas com a Internet".
Se levantarmos os
olhos na rua, pouco será o contacto visual que se estabelece com outros
transeuntes. Um fenómeno, pode dizer-se, universal. As cabeças baixam-se para
os ecrãs e a voz dá lugar ao texto escrito. "Tudo tem um lado
positivo", ressalva Helder Bastos, mas as redes têm "um lado que está
a deteriorar muitas das qualidades da comunicação humana". Enquanto
académico ligado à comunicação, admite alguma preocupação com estas questões,
"por afetarem a capacidade de ouvir, de olhar olhos nos olhos, até mesmo
de falhar".
João Teixeira Lopes,
presidente da Associação Portuguesa de Sociologia e docente da faculdade de
Letras da Universidade do Porto, tem uma visão menos derrotista. "Nem
apocalípticos nem integrados", sublinha, recorrendo a Umberto Eco.
"Não quero ter uma visão catastrofista, mas é evidente que há um enorme
efeito das redes sociais na construção das identidades".
Chamath Palihapitiya
descreveu a rede social como uma plataforma de criação de informações erradas,
repletas de inverdades e desprovidas de qualquer "discurso civil" - e
este foi o primeiro problema apontado por João Teixeira Lopes. Um dos efeitos
do Facebook é "aquilo a que se pode chamar de atitude pós-verdade, ou
seja, cada vez mais a confirmação dos factos parece ser indiferente às
pessoas", afetando o "processo da constituição das opiniões".
Para Fábio Malini,
professor e investigador na área das ciências de dados, redes sociais e
comunicação política, "toda a ferramenta que determina o que um usuário
poderá ler, ouvir e ver influencia duplamente o comportamento: individual e
coletivamente". Nas palavras de Palihapitiya, os comportamentos "estão
a ser programados" sem que as pessoas se apercebam disso, questão que tem
sido levantada por vários académicos. "Estão a manipular as pessoas. Há
uma espécie de premeditação, sabem como fazer com que as pessoas tenham
determinado comportamento", defende Hélder Bastos.
Não só as redes têm
impacto nas relações interpessoais, como também na ação do indivíduo na esfera
pública. "A esfera pública, em termos tradicionais, é uma esfera de
participação, em que várias partes expõem os seus argumentos e há troca,
contra-argumentação e até conflito, que também é muito importante",
explica João Teixeira Lopes.
"Podemos ver isso
explícito na eleição de Donald Trump, que, sabe-se agora, foi eleito com base
em mentiras, em notícias falsas rapidamente propagadas, que ganhavam um grande
número de "likes" e muitas foram mesmo criadas dentro da própria
campanha". Gera-se, assim, o problema da construção de opinião e espírito
crítico, fortemente influenciado nesta era da pós-verdade.
A questão aqui é
bastante curiosa, explica Fábio Malini. "Quando as redes são baseadas em
circunvizinhanças - ou em bolhas ideológicas -, a tendência é os indivíduos
protegerem-se uns aos outros, circulando correntes de informação duvidosa para
proteger a sua comunidade de amigos. O Facebook hospeda um comportamento
coletivo baseado num poder pastoral. Nele, as pessoas precisam comummente de
liderar rebanhos".
E são estas correntes
que se movem em círculos que afetam a construção das opiniões ou mesmo, como
disse Palihapitiya, programam os públicos. "Então quanto mais próximos,
menor é a nossa autonomia informativa, porque não temos acesso ao ponto de
vista diferente", acrescenta Fábio Malini.
Esforço no
"fact-checking"
Envolto numa onda de
polémicas, o Facebook não parou. Perante acusações sobre propagação de notícias
falsas, arregaçou as mangas e começou a criar ferramentas para travar o
fenómeno. Há dias, anunciou estar a mudar a forma como identifica
"notícias falsas" para um sistema mais eficaz. Em vez de apenas
assinalar as notícias que já foram verificadas pela equipa responsável pela
verificação de factos (fact-checkers), o Facebook passará a associar-lhes
"artigos relacionados", dando assim aos utilizadores o contexto
fornecido pelos verificadores de factos sobre as falhas dessas histórias.
Ainda que pareça não
haver solução mágica para um fenómeno transversal a todo o Mundo, os
investigadores acreditam que passa por educar e consciencializar os públicos
para estas transformações. Não culpando apenas a ferramenta ou o utilizador, é
fundamental conseguir moderar o uso e a influência, por via da educação e da
implementação de regras. Este é o argumento que une tanto Hélder Bastos como
João Teixeira Lopes.
Da mesma forma que
Palihapitiya pediu à audiência que o ouvia que descansasse das redes sociais -
"encorajo-vos a todos a interiorizar a gravidade do problema" -,
Hélder Bastos e João Teixeira Lopes acreditam que é essencial dar um passo
atrás e olhar o fenómeno de uma outra perspetiva. "As camadas mais jovens
são nativos digitais, não têm termo de comparação" e por isso é importante
"criar momentos de exterioridade".
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