A INCENDIÁRIA
Rolamos lentamente pela paisagem devastada. Sob o disco sangrento do sol pendurado no fumo, as pessoas passam, encostadas de olhos mortos às suas casas, tractores e carros. O ar arde. De repente, um carro da Brigada de Trânsito aparece parado de porta aberta no meio da estrada com todas as luzes a piscar como uma árvore de Natal. O condutor, sozinho, combate com o extintor do carro as labaredas que mordem o alcatrão. São 4 horas da tarde do dia 3 de Agosto de 2003.
Nunca mais esquecerei que, evitando o fumo branco que sai da base das chamas sufocadas pela espuma, o militar da GNR olha para o céu à procura de azul.
Como a dele, a raiva que sentimos não tem objecto. Não é certamente dirigida à natureza que estava cá antes de nós, cá ficará depois, e não gosta da morte. Nem é aos homens que temos raiva: quais deveríamos odiar? Nós próprios? Os outros? Proponho que odiemos antes a história. Isso: a história, o comboio da história, essa metáfora que avança largando fagulhas e provocando incêndios, o comboio que uma poderosa locomotiva puxa. Marx disse-nos o nome da locomotiva: capitalismo. É a locomotiva do progresso capitalista que incendeia a floresta portuguesa.
Das pessoas que li e ouvi sobre esta catástrofe até ao dia em que escrevo, 5 de Agosto de 2003, só Vital Moreira no “Público” de hoje se aproximou do coração das trevas. Recorreu à história para explicar a ruína dos camponeses e o seu envelhecimento, o progressivo desinvestimento do Estado na agricultura, no interior, na floresta. Tudo isto dura desde o século XIX e agravou-se muito com os governos posteriores à contra-revolução de 1976, esses funcionários de Clio, a incendiária.
A partir do século XVIII, os camponeses foram desaparecendo dos campos europeus e norte-americanos pela violência bruta e directa das milícias dos ricos, ou expulsos pela fome, pelas dívidas, pela mecanização, pelo fim da propriedade privada dos pequenos em favor da propriedade privada dos grandes.
O que entra em lenta cinza pelas minhas janelas em Pedrogão Grande e pousa docemente sobre o meu teclado, os meus livros, a minha roupa, é a via portuguesa para o capitalismo nos campos. Sim, falo de um destino histórico, tanto mais português, mais cruel e inumano, quanto menos se confessa e se entende, quanto mais neutro e sereno parece. O “reordenamento do território”, essa miraculosa panaceia de que tantos falam e tão poucos percebem, está a decorrer rapidamente perante os nossos olhos: corre à velocidade das chamas e do vento. Depois do desastre, muitas dezenas de milhar dos 500.000 pequenos e pequeníssimos proprietários de florestas terão perdido tudo e perderão, por fim, a terra.
O que arde em Portugal é o campesinato português, expulso do Alentejo pelo PS, varrido do centro e do norte pelas PACs do PS e do PSD, despojado de tudo pelo fogo. Ardem os velhos de olhos rasos de lágrimas que só a conversa mole de enfermeiros brancos consegue arrastar, sobre um fundo de céu em cinza, para longe da meia dúzia de oliveiras a que dedicaram a vida. Ardem os bens dos descendentes de velhos já mortos que deixaram morrer os velhos e os sobreiros de que cuidavam para plantarem no seu lugar mato, casas vazias e eucaliptos.
Haveria – haverá ainda? – outra história possível? Vejo na televisão a falsa tristeza de quem, lá no fundo, pensa que Clio só saúda os vencedores. Vejo nos telejornais os olhos serenos de quem atribui subsídios como quem deita pazadas de terra sobre um caixão. E penso num camponês vizinho meu, do outro lado do Zêzere. Tem 17 anos. Dezassete. O pai, falecido, deixou-lhe o que tinha, terra, gado, máquinas. Perdeu tudo. Vai certamente partir para o litoral onde não há agricultura nem incêndios. Talvez não tivesse que ir se, em vez de menos Estado, em vez de mais liberalismo, o interior de Portugal tivesse tido a sorte de ter sido governado nestes últimos 30 anos, já nem digo por socialistas, bastavam social-democratas, agentes de uma história mais generosa.
Paulo Varela Gomes
escrito e lido em 2003,
relembrado em 2017 via Rui Bebiano e Natércia Coimbra
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