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quarta-feira, 20 de julho de 2016




O VERBO REPOUSAR

Porque resistimos tanto a parar e a encontrar formas de repouso que nos devolvam a nós próprios? Por uma razão simples: achamos que o activismo descomplica e a quietude nos atrasa, abrindo o tampão das nossas motivações mais profundas.




Há um curioso conto da sabedoria islâmica que fala de um homem que perde uma chave dentro de casa. Porém, como no exterior há mais luz e se vê melhor, em vez de a procurar no sítio onde a perdeu, vem colocar-se confortavelmente a buscá-la ali. Parece bizarro, mas acontece-nos a todos com frequência: buscamos onde julgamos ser mais fácil e não necessariamente no sítio onde seria razoável que o fizéssemos. Por exemplo: porque resistimos tanto a parar e a encontrar formas de repouso que nos devolvam a nós próprios? Por uma razão simples: achamos que o activismo descomplica e a quietude nos atrasa, abrindo o tampão das nossas motivações mais profundas. O movimento parece mais fácil: ele preenche o tempo, mantém-nos ocupados dentro dos seus círculos em vertigem, enquanto o repouso tantas vezes começa com a sensação de um esvaziamento, surpreendente, incómodo, duro de lidar. Por isso fugimos do repouso verdadeiro, onde o encontro connosco próprios é inescusável. Ocorre amiúde a pessoas sobrecarregadas de actividade que decidem finalmente fazer um tempo de paragem ou de retiro. Não raro, a primeira experiência por que passam é o desejo de escapar dali, considerando que o retiro foi uma má opção, pois o que começam por sentir é um desamparo e uma pobreza, como se estivessem, de repente, sozinhos a lutar com a sua noite. E tinham colocado expectativas tão altas em relação àquele tempo de pausa. A pressão ofegante parece, assim, mais útil: dá-nos o sentido, mesmo se irreal, de que alguma coisa está a acontecer. Achamos que somos nós que corremos e a paisagem está parada. Ainda que seja tudo ao contrário: a paisagem desloca-se numa aceleração imparável e nós permanecemos fixos sem sair do lugar, cada vez mais presos ao ponto onde nos encontramos. O ritmo ininterrupto das nossas jornadas, embora nos atropele e progressivamente nos torne estrangeiros de nós mesmos, como que nos empurra para a frente — e isso é bom; como que nos coloniza por inteiro — e consideramos isso, por fim, até tranquilizante, pois adia o confronto com a nossa existência desvitalizada. Deste modo, o motivo por que desaprendemos a arte do repouso não anda assim tão longe da sabedoria reflectida pela pequena história da tradição islâmica.

Thomas Merton, um mestre que precisamos de redescobrir, escreveu: “O caminho da quietude não chega a ser sequer um caminho, e quem o segue não encontra coisa nenhuma”. Soa estranho, não soa? Aprender a repousar é também aprender a libertar-se do imediatismo das nossas expectativas e dos nossos desejos muito idealizados. Repousar é dizer no fundo do seu coração: “Estou aqui à espera de nada”. E esse tempo inútil, esse contacto das nossas mãos vazias com a temporalidade pura, esse não ter planos, esse desistir de resolver problemas ou de pensar na pressão que representa o momento seguinte, esse ser simplesmente acaba por revelar-se mais reconciliador do que as nossas extenuantes e fragmentadas jornadas de corta e cola. O verbo repousar não é um verbo fácil. Se o não fosse não éramos tão errantes, tão sôfregos, tão atordoados, tão maquinais, a nossa respiração não seria tão férrea, e a hospitalidade que dedicamos à vida não seria tão imprecisa. Mas o repouso, o verdadeiro repouso, é uma daquelas experiências que nos abrem ao espantoso espectáculo da vida. Esse que comparece no poema de Emily Dickinson: “Como se eu pedisse uma simples Esmola/ E na minha mão maravilhada/ Um Estrangeiro depusesse um Reino,/ e eu ficasse de boca aberta —/ Como se perguntasse ao Oriente/ Se tem uma manhã para me dar —/ E ele abrindo os seus Diques de púrpura,/ Me despedaçasse com a Madrugada”.


José Tolentino Mendonça

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