Grupo de
Investigação do Pensamento Português
“Chamo
«cultura», no sentido absoluto, à faculdade de nos desprendermos do nosso ser
biológico, do eu individual, acanhado, restrito, de todos os limites que tendem
sempre a impor-nos as condições particulares de espaço e de tempo, do «aqui» e
do «agora», - e dos acidentes de classe, de partido, de nação, de raça; ao dom
de dessubjectivarmos a nossa vida psíquica, o nosso pensar espontâneo; ao de
tendermos para um nível de racionalidade perfeita, - para o nível do divino, se
acharem assim preferível, - na maneira de julgar e de actuar no mundo. É em
suma o equivalente, no pensar racional, do que chamam os místicos a «união com
deus»; é o processo de divinização do ser anímico; é a completa efectuação
daquele dizer do Evangelho: «todo o que procura salvar a sua vida» (isto é: o
que se ativer ao âmbito da vida individual limitada, essa mesma que está presa
ao nosso condicionamento biológico) «perdê-la-á; e todo o que a perder,
salvá-la-á» (isto é: poderá constituir, por tal desprendimento, a sua
personalidade racional, - a que é absoluta, desenleada, sobrepairante, una,
sendo, por isso mesmo, livre). Ser culto é, ao cabo de contas, o pensarmos sub
species aeternitatis, de que falou na Ética o Espinosa. Estou eu em crer que
seremos cultos na medida exacta em que formos largos, compreensivos, liberais,
amantes; […]”
- António Sérgio, Cartas do Terceiro Homem, in Democracia, Lisboa, Sá da Costa, 1974, p.354.
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